
Meu Coração
Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer
Quando criança eu estudava numa escola do bairro, chamada Sabor de Mel. A escola era toda amarela, o uniforme era amarelo, tinha um pátio pequeno bem arborizado e entrava bastante luz. Nos corredores sempre tinha muitos brinquedos espalhados e uma pequena cantina que vendia doces e salgados. Os alunos chegavam sempre bem arrumados, portando uma mochila colorida e uma lancheira de algum super-herói. E usávamos o mesmo uniforme que era comprado obrigatoriamente na mesma loja: todo mundo com a mesma camisa, mesmo shorts, mesma meia e o mesmo tênis. E eu adorava a ideia de ir para escola, tinha apenas 9 anos e gostava de ver os amigos, de brincar, sorrir, e surgia uma alegria genuína quando eu pensava na escola.
Até que um dia uma coleguinha da escola me chamou de macaco.
De início eu não entendi, mas senti maldade na fala dela e aquele momento não saiu mais da minha cabeça. O riso que ela deu, a maneira que ela apontava para mim e como os outros coleguinhas também riam. E ao abrir um livro, e me deparar com a imagem de um macaco, entendi que eu não era um macaco, e o mais triste: não existia macaco aluno na escola. E daí em diante eu não me sentia mais pertencente aquele espaço e por muito tempo nem me achava merecedor de estar ali.
Essa dor me atravessou e ficou comigo ao longo da minha infância, e embora eu tenha demorado a entender que aquela coleguinha da escola só queria me chamar de feio, eu me senti feio. Mas eu não me senti feio somente na escola, eu me senti feio no mundo.
E com o tempo eu aprendi a lidar com essa dor, mas ela insistia em voltar em cada encontro que eu tinha com um menino negro na rua, na praia, no sinal, na porta de um restaurante. Diferente das outras pessoas, eu os olhava nos olhos, tinha interesse por aqueles corpos, jovens, retintos, de sorriso tímido e cheio de cicatrizes. Apesar de ainda ser criança, eu já enxergava no olhar de um menino negro uma possibilidade de ser e existir na sua totalidade, e sem entender, de alguma forma esse sentimento denso me empurrava para algum lugar que eu ainda não sabia codificar.
E um dia, me olhando no espelho, me tocando, me percebendo, aos prantos, eu percebi que esses meninos sou eu.
E a fotografia chegou para mim como uma ferramenta que as pessoas usavam para eternizar momentos, mas também para registrar coisas belas. Foi então que eu decidi usar a fotografia como um canal de beleza para esses meninos. Existia uma urgência em mim para fotografar esses meninos numa narrativa possível de existência, saltando no mar, sorrindo, brincando. Eu só queria dizer ao mundo que eu podia vê-los feliz.
Com o tempo o disparo da minha câmera passou a disputar narrativa com o disparo de um revólver. A lente da minha câmera passou a disputar narrativa com a lente das câmeras de segurança, e a minha fotografia materializada na parede passou a disputar narrativa com olhar amarrado de pré-conceitos.
Numa cidade cercada por mar e por meninos lindos mergulhando, existindo, a escolha da fotografia acontece justamente pela necessidade de se fazer beleza em cenários, com personagens e ferramentas possíveis para todos, é jogar luz nesse apagamento. Porque embora o peso da câmera que se fotografa hoje seja mais leve, Richard Serra diz que tudo que escolhemos nessa vida por ser leve logo nos revela seu peso insustentável.
E no meu coração ainda vive o menino Wendy de 9 anos com uniforme amarelo, indo para escola. E uso da criatividade desse menino que ainda existem em mim para alimentar sonhos através da minha imaginação. A fotografia é o meu real imaginário impossível que muitas vezes vai além do que eu consigo fazer. Mas me interesso demais pela viagem que posso fazer até o outro, então eu chego mais perto, mais perto. Gosto do esforço cotidiano de olhar, de olhar de novo, e enfrentar minhas próprias contradições para não marginalizar antes de entender a trajetória de um menino negro.
Se eu sou o sonho mais bonito dos meus ancestrais, todo menino preto é.
Axé.













Todo Menino É Um Mar













